Pandemia Rima com Economia - Por #Maria Gorete Rato
Crise sanitária versus Crise económica
O ano de 2020 ficará para a História como o ano em que o Mundo, tal como o conhecíamos, ficou virado ao contrário.
Uma doença, o COVID 19, que começou como uma epidemia localizada numa região da China, disseminou-se em poucos meses a um nível global, a ponto de ser declarada pandemia pela OMS, arrastando a maioria dos países do mundo para uma crise sanitária sem precedentes há mais de cem anos, e afetando particularmente a Europa e os EUA.
Colocados perante o dilema entre acudir à crise sanitária ou proteger a economia, os governos reagiram de modo mais ou menos rápido, adotando políticas diferenciadas de confinamento das populações e encerramento de diversas atividades, que vão desde modelos mais radicais na China ou Itália a modelos mais aligeirados como o da Suécia.
Tratando-se de uma crise sanitária global, também os efeitos da paragem brusca da atividade económica se sentem já por todo o mundo, iniciando uma recessão que se prevê que seja brutal, com milhões de novos desempregados, filas imensas nos bancos alimentares, êxodo de milhares de pessoas das grandes cidades para os campos, rutura de sistemas de saúde e até de serviços funerários, expondo e acentuando as desigualdades sociais e regionais do modelo económico dominante.
Efetivamente, o dilema está no facto de a solução para a pandemia ou pelo menos a sua contenção em níveis que possam ser geridos pelos sistemas de saúde, por em causa as principais alavancas do crescimento das últimas décadas, que está assente na promoção do consumo e comércio mundial, nas viagens de negócios e lazer, nos espetáculos desportivos e musicais de dimensão planetária, gerando um grande aumento do tráfego de pessoas e mercadorias. A terciarização dos países mais desenvolvidos com a deslocalização das indústrias para países de mão de obra barata, e o domínio das monoculturas em regime de produção intensiva, criaram uma forte interdependência das economias de países geograficamente muito distantes, obrigando a longas cadeias de valor, agora muito dificultadas ou mesmo interrompidas.
No espaço da EU aponta-se para uma descida do PIB superior a 10%, com níveis elevados de desemprego, que em vários países poderão ultrapassar os dois dígitos, e que em Portugal, embora um pouco mais baixos, levarão a novos défices orçamentais na ordem dos 6% e 2% nos anos de 2020/2021.
Passados mais de três meses da chegada do vírus à Europa, e decorridas as primeiras fases de contenção e mitigação, atingimos uma fase em que estando a crise sanitária sob controlo, é necessário dirigir a atenção para a crise económica já instalada em força na maioria dos países.
Sendo a União Europeia uma zona profundamente integrada, ela contém também um grande nível de assimetrias regionais, o que implicará uma capacidade de resposta das suas instituições de modo a não deixar para trás os países em que a crise se fez sentir de forma mais acentuada, e cuja capacidade de resposta é inferior à de outros.
Estas crises vêm por a nu algumas debilidades provocadas pelas políticas neoliberais dos últimos anos e reforçar a necessidade de Estados e instituições fortes, com sistemas de saúde e assistenciais capazes de responder às necessidades imediatas das populações e de garantir os meios financeiros necessários ao apoio à reconstrução das economias.
Portugal, um país periférico – vantagens e desvantagens
Portugal, embora afetado pela pandemia, tem vindo a conseguir controlar a crise sanitária em níveis bastante abaixo dos cenários catastróficos apresentados no início da mesma. Vários fatores têm sido apontados para este relativo sucesso das medidas adotadas pelo Governo, com o apoio do Presidente e da maioria dos deputados na Assembleia da República.
A nossa localização geográfica, na periferia da Europa terá atrasado a chegada do vírus, permitindo-nos antecipar medidas de confinamento mais rapidamente do que os países nossos vizinhos e aprender com as suas experiências menos positivas. Logo após a identificação dos primeiros casos de COVID 19, o Governo, ouvindo as autoridades da saúde, procedeu ao encerramento da fronteira física com Espanha, suspendeu as viagens marítimas e aéreas, exceto as prioritárias, encerrou escolas e estabelecimentos de hotelaria e diversão e todos os espaços comerciais exceto os considerados essenciais , o que permitiu passados dois meses, atingir o objetivo de aplanamento da curva epidémica para níveis que não puseram em causa o funcionamento dos serviços de saúde que têm dado uma resposta extraordinária à pandemia, já apontada como um sucesso mesmo fora de Portugal.
À crise económica provocada pela paragem brusca de várias atividades, o Governo tem respondido com medidas que mesmo que insuficientes, evitarão no imediato que disparem os números do desemprego e que as franjas mais vulneráveis e com menores rendimentos, da população se vejam numa situação de carência absoluta. Contudo, se no curto prazo a situação está estabilizada, é importante avaliar os impactos a longo prazo na economia, e preparar o futuro. De notar que as medidas implementadas, como o lay-off, o teletrabalho, o ensino à distância, serão sempre transitórias e não poderão manter-se durante o tempo que as melhores expetativas de encontrar uma solução para a crise sanitária antecipam. Se os resultados de 2019 nos permitiam encarar positivamente a evolução do crescimento e emprego em Portugal, as previsões atuais apontam já para uma recessão que ultrapassará a de 2008/2013 com taxas de decréscimo do PIB na ordem dos 7% e de evolução do desemprego para os 10% da população ativa.
Ora, se a nossa posição periférica poderá ter constituído uma vantagem no combate à pandemia, ela tem o sentido contrário no que à crise económica diz respeito. Dentro da EU, Portugal é um dos países mais expostos ao exterior, com um modelo de crescimento muito baseado nas exportações e turismo, fraca industrialização e com elevada dependência de importações de países terceiros. Na resposta à crise sanitária isso foi bem visível nas dificuldades de aquisição de testes, equipamentos de proteção e ventiladores, com atrasos na entrega e aumentos de preços devido à escassez da oferta europeia. Dificuldades idênticas ás sentidas pelos nossos vizinhos do Sul, especialmente a Itália e Espanha, mas também a França e o Reino Unido, principais mercados de destino das nossas exportações e fornecedores de turistas ao nosso país.
Será por isso o tempo certo, para no âmbito da EU, e particularmente no caso de Portugal, repensar todo o modelo em que assentou a recuperação dos últimos anos, indo para lá das receitas tradicionais na retoma da economia e arriscando soluções inovadoras e integradoras que promovam a solidariedade e o bem-estar futuro das populações.
Uma crise de confiança que impacta ao mesmo tempo a oferta e a procura.
Como em todas as crises, um dos fatores fundamentais para iniciar a retoma da economia será o restabelecimento da confiança dos consumidores, profundamente abalada pela crise sanitária. Em Portugal, e segundo o último inquérito do INE, ela situa-se já nos níveis mínimos de 2013, altura da intervenção da Troika aquando da última crise financeira, e irá provavelmente continuar a cair.
A incerteza na duração desta pandemia, a rápida transmissão comunitária da doença e o seu carácter global, não se antecipando a descoberta de um tratamento eficaz ou vacina a curto prazo, provocam um sentimento generalizado de insegurança nas populações, que não incentiva à recuperação da confiança.
As próprias medidas de confinamento implementadas, ainda que justificadas pela necessidade de controlo da pandemia, geraram uma desconfiança dos consumidores, na medida em que interromperam o convívio social, as deslocações desnecessárias, as atividades de lazer e mesmo profissionais, centrando os consumos nas necessidades básicas do núcleo familiar mais restrito.
Criaram-se entretanto novos hábitos de consumo e de compra, focados na utilização dos meios digitais, no comércio de proximidade, nas atividades de lazer ao ar livre e na utilização privilegiada do transporte próprio.
O impacto em valores fundamentais, como são a saúde e a segurança, impele a uma transformação radical dos estilos de vida, que poderão nunca mais voltar a ser os mesmos.
A própria crise económica já instalada, com redução significativa de rendimentos para muitos, levará a uma retração acentuada do consumo, nomeadamente dos bens e serviços que não sejam essenciais. Ao mesmo tempo, criam-se novas necessidades, ao nível dos produtos de proteção, higiene e bem-estar, com as vendas a aumentar significativamente, pelo que os consumidores serão levados a fazer escolhas mais ponderadas nos tempos mais próximos.
Também ao nível da oferta se verificaram carências com a interrupção de algumas cadeias de distribuição, dificuldades de escoamento dos pequenos produtores locais, agravamento do custo de aquisição de algumas matérias primas, menor acesso aos mercados mais distantes e principalmente pela concentração industrial em zonas do mundo muito afetadas pela pandemia.
Estes fenómenos acentuaram o domínio dos grandes operadores mundiais e poderão levar no futuro a assistir a processos de concentração e de limitação do comércio internacional com os prejuízos que daí advêm para os consumidores que vêm as suas escolhas reduzidas.
Caberá aos pequenos produtores e fornecedores locais encontrar formas de associação e cooperação que lhes permitam concorrer neste novo mundo e aos governos e instituições europeias apoiar esses movimentos colmatando as suas naturais insuficiências de capital e de recursos humanos qualificados.
O após- COVID19 – novas tendências de consumo e novas formas de organização do trabalho
Dada a incerteza na duração da crise sanitária, ainda que controlada, e a impossibilidade de garantir que no médio prazo surja a tão desejada imunidade para a maioria da população, o regresso gradual e faseado da atividade económica vai ser acompanhado de medidas restritivas de convívio e de maiores exigências ao nível da higiene e proteção pessoal. Este longo período de confinamento total ou parcial, provocará efeitos psicológicos mais ou menos duradouros o que levará a alterações nos hábitos de consumo e nas formas de organização do trabalho.
Novas tendências começam já a surgir, nomeadamente as que resultam do crescimento generalizado da digitalização e utilização dos meios tecnológicos. Nos últimos meses cresceram significativamente os números do comércio on-line, o teletrabalho implantou-se nos serviços públicos e privados, a formação e o treino à distância são comuns em muitos setores de atividade.
As limitações às deslocações, e os riscos que o uso dos transportes públicos e a frequência de aeroportos acarretam, levarão à procura de residências mais próximas do local de trabalho, privilegiando as deslocações a pé e em modo ciclável e à busca por experiências de viagens mais curtas, promovendo o turismo interno e de pequenos grupos.
Haverá uma clara diminuição do turismo de massas, dos cruzeiros e viagens low-cost, acentuando-se a tendência de turismo de natureza, as viagens de moto e em autocaravana.
As dificuldades colocadas à reabertura e ao funcionamento de espaços fechados irão reduzir a procura de ginásios, bares e discotecas, privilegiando atividades ao ar livre, uso de esplanadas e prática de desportos náuticos.
Também a oferta cultural, com os museus e salas de espetáculos fechadas, começa a fazer-se através dos meios digitais, com experiências que se no imediato têm normalmente um carácter gratuito e solidário poderão caminhar para plataformas em que os consumidores serão chamados a pagar pela sua fruição. Voltam também algumas tendências que se julgavam desaparecidas, como a exibição de filmes e a realização de concertos ao ar livre em modo drive-in, apelando mais uma vez à segurança no uso das viaturas particulares.
O setor da restauração tem vindo, durante o período de confinamento a apostar no fornecimento de refeições em regime de take-away ou delivery, o que começando por ser uma alternativa ao seu funcionamento normal, poderá representar uma tendência futura, dadas as garantias de conforto e segurança que estas modalidades oferecem aos consumidores.
Os consumidores irão privilegiar aquisições que aportem valor para além da satisfação imediata, aumentando as compras de tecnologia, e de reforço das redes domésticas de wifi.
Nas áreas comerciais e industriais irá provavelmente assistir-se a uma reorganização dos espaços, reduzindo as áreas de escritórios e lojas físicas, mas aumentando as áreas industriais e de logística. Nestes setores irá avançar mais rapidamente a robotização de tarefas com a consequente redução do número de trabalhadores em muitas atividades.
Haverá necessidade de reforçar e transformar os departamentos de higiene e segurança no trabalho de muitas empresas, nomeadamente nas atividades que impliquem contacto direto com o público.
O risco elevado de contágio nos transportes coletivos poderá levar os consumidores a inverter a tendência dos últimos anos, retomando a utilização de transporte individual, nomeadamente a viatura própria e optando pela mobilidade suave. Esta tendência poderá mesmo ser potenciada pela descida do custo dos combustíveis provocada pela forte redução da procura mundial de petróleo.
Os serviços de cuidados de saúde e bem-estar, e de assistência aos idosos terão uma procura e valorização acrescida, exigindo-se aos prestadores que garantam os melhores níveis de higiene e segurança dos consumidores.
À semelhança de todos os outros setores também os serviços bancários, de seguros e outros serviços de apoio aos negócios irão privilegiar os canais digitais, reduzindo as necessidades de espaços de atendimento presencial.
Se a transformação digital estava em curso há várias décadas e muitas destas tendências faziam já parte dos hábitos das camadas mais jovens da população, a crise sanitária provocada pelo COVID 19, mas principalmente as medidas implementadas para o seu controlo, levarão a Acelerar o Futuro, segundo a opinião de vários pensadores que têm vindo a estudar este tema.
Retoma ou Reinvenção – uma oportunidade para uma economia circular mais sustentável
Estamos perante o dilema de duas crises simultâneas, a sanitária e a económica, em que se confrontam interesses divergentes de difícil convívio. Não é possível congelar a economia, enquanto se trata a saúde, mas esta depende também do bom funcionamento daquela.
Se o próprio combate à crise sanitária fez já sobressair algumas das debilidades estruturais da economia europeia, ele colocou também a nu as desigualdades na evolução económica e social dos vários países que integram a EU, seja ao nível dos seus sistemas de saúde, seja das capacidades de apoio ao financiamento das empresas e dos particulares que viram os seus rendimentos diminuídos.
Por isso se invocam mais que nunca os princípios da solidariedade e coesão regional, na definição de apoios financeiros suficientes para a retoma da economia europeia, muitos clamando pela necessidade da criação de um novo Plano Marshal que promova uma verdadeira reconstrução dos sistemas económicos e sociais com uma recuperação rápida do emprego e dos rendimentos.
Havendo setores particularmente afetados, como a aviação, o turismo e outras atividades de lazer, será também aí que a retoma se antecipa mais demorada, antevendo-se a falência para muitas empresas, e a necessidade de apoios dos estados em muitas outras.
Nos últimos meses, vivemos uma espécie de economia de guerra, em que para além da especial atenção dedicada à manutenção em funcionamento dos setores considerados essenciais, que vão da saúde à alimentação, a maior parte dos recursos financeiros disponíveis tem sido alocada à investigação científica na área do Covid 19, e ao desenvolvimento de produtos industriais conexos. Em pouco tempo foi possível desenvolver e produzir em Portugal componentes para os testes, equipamentos de proteção individual e até ventiladores, em quantidades que poderão satisfazer a prazo, a totalidade das necessidades internas e até exportar. Ora tal só aconteceu porque ao longo das últimas décadas foi feito um grande investimento em ciência e engenharia, e porque a nossa indústria, da têxtil à automóvel, foi capaz de se reinventar rapidamente.
Estamos hoje numa encruzilhada, em que o caminho agora escolhido poderá ser decisivo para que o futuro nos encontre mais bem preparados para responder aos desafios que esta ou outras pandemias nos coloquem, sendo necessário esquecer as receitas tradicionais e arriscar novas soluções que potenciem as capacidades e competências agora descobertas.
Esta crise global e sistémica demonstrou que já não garante o bem-estar dos europeus, um modelo de crescimento que assenta no consumo exagerado, esgotando os recursos naturais e acentuando as desigualdades dos países e promovendo a concentração da riqueza.
Caberá agora à EU promover a captação e distribuição dos recursos financeiros necessários à recuperação dos seus membros, apostando em setores sustentáveis e que permitam ganhar independência das suas economias face aos grandes players mundiais.
Portugal, pelo seu lado, deverá tentar maximizar a sua quota nesses fundos a custos financeiros baixos ou nulos, para apostar na diversificação da sua economia, que passará por uma maior digitalização e industrialização, pelos incentivos à agricultura a caminho da auto suficiência, às energias renováveis e à economia dos oceanos, e pelo reforço da aposta na educação e investigação científica, reduzindo a sua grande dependência do turismo e serviços conexos.
Assinale-se que a reprogramação anunciada dos fundos ainda disponíveis no Quadro do 2020, aponta já nesse sentido, privilegiando os projetos de I&D nas áreas da saúde e de resposta à pandemia.
É por isso chegada a hora para a Europa e para Portugal, não da retoma, mas sim da reinvenção, que nos permitam ganhar competitividade ao nível global, e que a próxima crise nos encontre mais preparados.
A Guarda - o futuro de uma região interior
Poderá a Guarda, e toda a Beira Interior, um território de baixa densidade, com uma das populações mais envelhecidas do país, cujas indústrias dominantes estão há muito em decadência, e com uma parte significativa da população emigrada, retirar lições desta crise, e sair dela mais forte e preparada para futuros embates?
As suas potencialidades enquanto região de montanha que inclui zonas classificadas como reserva natural, com baixos níveis de poluição, a sua localização fronteiriça com acessos rodoviários adequados, onde se localiza uma boa parte das aldeias históricas, permitem-lhe aspirar a um posicionamento mais ambicioso na geografia económica do país.
Para tal, será importante aproveitar as suas vantagens comparativas no quadro das novas tendências dos consumidores, apostando na promoção do turismo rural e de montanha , investindo nas modernas formas de alojamento de tipo eco- hotéis e glamping, dando incentivos à instalação de empresas do setor tecnológico e captando novos residentes; reforçando as valências dos parques logísticos e potenciando a sua utilização pelas indústrias com vocação exportadora; apostando na agropecuária e produtos endógenos; potenciando a agricultura com cadeias de distribuição locais, e promovendo a cooperação entre a indústria e a academia que deu provas durante esta crise, de competências que deverão ser continuamente valorizadas.
Será fundamental que os projetos privados e públicos sejam pensados em articulação com cidades dos distritos vizinhos e até espanholas, para que possam ganhar escala e facilitar a captação dos fundos necessários à sua implementação.
Nunca como hoje foi tão importante garantir um estado central forte, que assegure a gestão de uma crise sanitária como não há memória, mas foi também fundamental a sua articulação com as autoridades do poder local, esperando que esta cooperação se mantenha viva na fase que se segue em que teremos que atender à crise económica, sem estar resolvida a sanitária.
Maria Gorete Rato