A Ciência em tempos de pandemia - Por #Anabela Massano
São tempos como este que mostram o quão fundamental é a investigação científica para um futuro próspero, sustentável e seguro. É por vezes difícil constatar a influência que a ciência tem no nosso dia-a-dia, e ainda bem. Ter avanços tecnológicos como dados adquiridos significa que a ciência funcionou e é aceite por todos. Como exemplo prático temos as vacinas. Ora, nem todos temos um mestrado em saúde pública, mas a maior parte de nós aceita com facilidade o consenso científico nesta matéria e aprova um programa de vacinação generalizado. Consensos científicos como este não são fáceis de obter. São necessários anos de investigação entre vários grupos espalhados pelo mundo, publicação de artigos com revisão por pares em revistas especializadas e apresentação de resultados em conferências internacionais. Este processo tem vindo a ser refinado desde o aparecimento do método científico e, de um modo geral, extremamente bem-sucedido.
Ao contrário do que se possa pensar, a ciência não foi apanhada desprevenida com a presente crise do novo coronavírus. Trabalha há muito tempo em vírus e epidemias. Em setembro de 2019 foi publicado um relatório da Organização Mundial de Saúde, que chama precisamente a atenção para o perigo viral. Dois meses depois surgia o primeiro caso da nova doença em Wuhan, na China. Era fácil prever uma nova epidemia, pois têm ocorrido vários surtos epidémicos ao longo da história, alguns deles já neste século como o SARS (2002-2003) e o MERS (2015-2018), ambos devidos a coronavírus como o atual, e que passaram sem causar grandes estragos à escala global. Na Europa pensámos que o problema era longínquo e não nos afetava. A epidemia provocada pelo vírus Ébola (2014-2017) revelou-se bem mais perigosa, mas não saiu de África. O HIV, também oriundo do continente africano, teve, pelo contrário, grande espalhamento global desde 1981 e já provocou mais de 32 milhões de mortos. Mas, após desenvolvimentos científicos impressionantes, a SIDA passou de uma sentença de morte para uma doença sustentável.
O biólogo molecular norte-americano Joshua Lederberg, Nobel da Medicina em 1958, afirmou que “a única grande ameaça ao continuado domínio do planeta pelo Homem são os vírus”. Podem-se juntar as bactérias, que são muito mais antigas do que nós, vivem muito tempo (há bactérias vivas com mais de meio milhão de anos) e continuarão na Terra mesmo após a eventual extinção da espécie humana.
Nós somos parte da Natureza e a evolução trouxe-nos até aos dias de hoje, apesar dos continuados ataques de vírus e bactérias, cuja existência só recentemente conhecemos. Veja-se o caso da Peste Negra, devida a uma bactéria, que, vinda da China, alastrou na Europa no século XIV e que voltou a deflagrar no Porto em 1899. O combate a esta peste está, aliás, na base do nosso sistema de higiene pública, pois o médico Ricardo Jorge fugiu da fúria popular no Porto contra os cordões sanitários, vindo fundar em Lisboa o Instituto Central de Higiene, antecessor do Instituto Ricardo Jorge.
Hoje já não pensamos que as epidemias são castigos divinos, mas sim processos naturais. O homem sempre partilhou o mundo com bactérias e vírus. Convivemos diariamente com eles. Temos vírus dentro de nós, e o material genético de alguns deles dentro do nosso próprio genoma. E temos também, um batalhão de bactérias, por exemplo, nos intestinos. Sabemos hoje manipular vírus e bactérias: até usamos uma bactéria para produzir insulina humana.
No contexto atual, a ciência está a fazer aquilo que pode. Não existe um passe de magia que acabe de repente com o novo vírus. Os cientistas chineses sequenciaram em tempo record o novo vírus (ficou em acesso livre em janeiro). Os testes que se estão a fazer em todo o mundo provêm desse conhecimento científico e da tecnologia que já tínhamos instalada para reconhecimento genético. A par com todo este trabalho, os cientistas também identificaram as artimanhas do novo vírus para penetrar nas nossas células e estão a trabalhar em fármacos e vacinas. Estes aliás já existem, mas é preciso tempo provar a sua segurança e eficácia, tal como para todos os fármacos e vacinas de que dispomos. Desta vez poderá é ser mais rápido, devido à grande pressão social. É possível que se consigam ainda este ano, embora tal não seja garantido. Veja-se que ainda não há vacinas para o SARS e o MERS, mas temo-las para a gripe A (a epidemia associada ao vírus H1N1, que em 2009-2010 terá causado 250.000 mortes) e para outras gripes.
A ciência sozinha não nos salva, mas sem ela estaríamos perdidos. É preciso sociedade, acima de tudo uma forte cooperação entre os humanos. O desafio está colocado à ciência, mas também à sociedade, à economia e à política. Não temos uma solução imediata, mas sabemos muito: sabemos o que é um vírus e como ele atua. Um exemplo dos nossos avanços nesta área foi a identificação retroativa do vírus da gripe espanhola (1918-1919), que levou génios como Amadeo de Sousa Cardoso ou Egon Schiele. Também agora vamos ser capazes de grande criatividade e união.
Não vai ser o fim do mundo. Sabemos hoje que os surtos virais são temporários, mesmo quando os nossos meios de atuação são escassos. Acabamos por ganhar imunidade ou dão-se mutações que fazem o vírus desaparecer. Até lá temos de fazer tudo o que podemos: testes em grande escala (em Portugal a escala tem sido manifestamente insuficiente), distanciamento social (uma prática que deve continuar, até pela possibilidade de recidiva no Inverno) e cuidados de higiene repetidos (como a lavagem das mãos). Os casos de doentes com maior risco, em especial os idosos, estão a colocar à prova o nosso Serviço Nacional de Saúde, depauperado pelo desinvestimento nos últimos anos. Os nossos profissionais de saúde vão estar, como Ricardo Jorge e Câmara Pestana, na primeira linha do confronto.
A comunidade científica está a responder. Uma das mudanças mais visíveis na ciência biomédica foi a rapidez de comunicação dos resultados da investigação. O número de artigos científicos sobre a nova doença aumentou drasticamente e eles estão a ser logo divulgados através de servidores eletrónicos, na forma de preprints, isto é, antes de avaliação pelos pares. Por outro lado, a comunicação de ciência também se intensificou. A ciência e a comunicação de ciência andavam mais centradas noutras questões, como as alterações climáticas, que aliás continuam prementes (embora as emissões de dióxido de carbono tenham diminuído). Agora, muita gente retida em casa pode-se informar sobre a ciência, não só na Internet e televisão, mas também em livros e revistas. Pode ouvir cientistas e médicos a explicar os vírus, o ADN e as proteínas.
Ciente que estamos inundados por desinformação e que a maior parte das pessoas prefere clicar no mais engraçado, no mais estranho, no mais sensacional estou igualmente convicta que a epidemia de fake news, que grassa em todos os meios de comunicação, pode ser pior que a esta epidemia propriamente dita.
Apesar disso, talvez esteja aqui criada uma oportunidade para as sociedades e os governos acreditarem mais na ciência e lhe proporcionarem mais meios. Em Portugal o investimento na ciência tem estado estagnado há anos. É indispensável que aumente a investigação biomédica, mas seria um enorme erro deixar as outras áreas científicas de lado. Precisamos de matemática (que faz modelos epidemiológicos), de física e química (sem as quais não se compreende a vida), de engenharia (os ventiladores são engenharia). E precisamos de mais e melhor comunicação de ciência. O país não tem investido o suficiente na cultura científica.
Não tenho a certeza de que o mundo venha ser mais racional. O mundo sempre foi racional e irracional ao mesmo tempo, mas a irracionalidade deve ser combatida tanto quanto o vírus. Não sei como vai ser o mundo, ninguém sabe.
Além da racionalidade uma outra nossa obrigação é a Solidariedade. O prefixo “pan” significa “todo, inteiro.” Falamos hoje muito de mundo global, mas os mundos nacionais permanecem fechados em si. Se soubermos atuar solidariamente, conseguiremos debelar a crise com maior brevidade, algo que a União Europeia ainda não entendeu. A mesma ação conjunta é necessária para enfrentar as alterações climáticas, cuja premência pode hoje não ser tão evidente, só porque as vítimas não se acumulam nos hospitais. Se não nos soubermos juntar, não conseguiremos resolver os grandes problemas do mundo.
No presente cenário, são de salientar, no entanto, alguns sinais de mudança. Nunca antes houve uma interação e integração tão grande entre a indústria e a academia", como evidenciam as "reinvenções" de empresas como a que fabricava cotonetes e agora produzem zaragatoas para testes de diagnóstico.
No limite, temos duas formas de reagir a essa crise. Ou nos refugiamos em casa e esperamos que destrua o que tem que destruir para depois regressamos ou antecipamos o que será o mundo depois da crise e começamos já a investigar e a desenvolver. Enquanto consumidores, temos o direito (e o dever) de exigir produtos e serviços com maior qualidade e mais seguros. E é a ciência que tem condições para os criar.
Acredito que a ciência dos próximos anos terá que ser mais pragmática pois se há coisa que esta pandemia veio evidenciar é que as prioridades mudam.
Este novo contexto, obriga-nos a pensar a ciência, tanto a fundamental como a aplicada, para enfrentar as necessidades efetivas das pessoas de forma mais rápida. No imediato, talvez algumas áreas fiquem para trás porque a Saúde vai ser a prioridade mais visível. Prova disso é o facto de quase todas as atuais chamadas de financiamento serem específicas da área da covid-19.
Tudo isto vai passar, mas não vai ficar tudo bem o mundo não vai ficar como dantes. Em todas as áreas, não só na própria ciência, vai sobretudo mudar a maneira como se encara o Futuro.
Anabela Massano